Wednesday, October 22, 2008

Da oficina de contos do SESC [primeiro semestre de 2008]

Vértigo

Tinha pés miúdos, lembro bem. E, mesmo assim, subia depressa. Sim, depressa, mas com o cuidado de quem ajeita as flores de um caixão. Pé ali, pé aqui. Pé ali, pé aqui.
E eu ficava lá, boba, olhando. Aos 16 anos, achava que não alcançaria, nunca, a certeza de seus pés pequenos de menino sobre o tronco daquela árvore cheia de rugas e segredos nossos.
Tinha medo, na verdade. Tinha medo.
Um dia, talvez, eu arrancaria com os dentes alguma coragem, do fundo de meu pânico, e subiria rápido também.
Só não esperava aquele gesto. Não dele.
- Vem – disse-me.
E eu, louca de raiva - saliva doce entre os lábios -, alcancei-lhe a mão.
Foi o começo do abismo.

Passei a viver da vertigem.
Anotava cada dia depois de dia num caderninho velho.
Abismo, abismo.
Sonhava-me com asas nos pés. E anotava. Sonhava-me um tronco forte. Sem medos. E escrevia lá cada detalhe de minha fortaleza. Enxergava seus pés miúdos e certeiros procurando os meus, débeis.

Fui ele mesmo, o abismo. Tentação súbita, ao seu lado.
Era exato e certeiro, sempre. Segurava-me como árvore frondosa. E dava-me às alturas. Árvore-homem-árvore.

Passei os anos vivendo a vertigem.
Até o fim.
Apoiando-me nas paredes, subi as escadas tortas. Segurando-me em meus braços, vinha eu. Olhei para cima, antes. A mesma sensação encravada no peito, como pedra atirada em ninho-passarinho. Tentei seguir-lhe o exemplo: pé aqui, pé ali.
Faltou-me a mão estendida:
- Vem.
Faltou-me. Estava presa ao gesto:
- Vem.
Subi, lenta. Saliva fria entre os lábios. Nenhuma raiva.
Já no alto, alívio-dor.
Abri a porta do quarto, sentia o cheiro ácido do desespero.
Aproximei-me da cama. Olhos fechados, nenhum suspiro, último. Pareceu-me, assim mesmo, com a certeza de sempre.
Dei-lhe um beijo nos pés miúdos. Beijei-lhe todos os pedaços, com o cuidado de quem se despede.
Foi, eterno, o começo do abismo.

Adriane Canan

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