O velório de Jesus Cristo
Aconteceu em Porto Alegre, alguns anos atrás.
Era uma Sexta-feira Santa. Eu estava em casa, na Cidade Baixa.
Telefone.
- Oi, Adri! Vamos comigo na missa? Faz tempo que não vou...
- Tá, tudo bem, vou contigo.
Roci, minha amiga cearense que também morava no Rio Grande naqueles dias, passaria em quinze minutos pra me buscar. E passou.
Centro de Porto. Estacionamos na Duque de Caxias, do ladinho do Palácio Piratini, eram perto das seis da tarde.
Sucedeu que naquele dia um ex-governador gaúcho era velado justo ali, no Palácio. E sucedeu também que bem na hora em que estávamos por passar pela frente da porta do Piratini despontou o caixão, carregado por senhores distintíssimos que não vem ao caso mencionar. Como talvez dissesse Machado de Assis, o leitor e a leitora que me desculpem, mas falta não há de fazer deixar de nomeá-los.
Fomos barradas pelos seguranças. Deixem o morto passar, e também os muito vivos que carregam seu peso. Podíamos ter contornado a Praça da Matriz, bem volteando em frente da Assembléia Legislativa e do Teatro São Pedro. Mas não, ficamos ali, bisbilhotando o cortejo fúnebre.
Passados alguns minutos, do morto só o cheiro das velas. Embalamos passos largos até a Catedral, pensando-nos atrasadas para qualquer missa a caminho; mas sem deixar, é claro, de confabular sobre os trejeitos de cada um dos que seguravam as alças. Só não falamos do morto, de quem sequer vimos a brancura funesta.
Entramos na Catedral. Vazia! Eu me sentei bem ao fundo, que Ave Maria bem rezada, ali no cantinho, já estava para mim de ótimo tamanho. Roci não contentou. Andou até perto do altar e ficou se espichando para tentar ver o que passava no meio de um bolinho de gente que ali se espremia. Baixinha como esta que vos escreve, viu pouca coisa. Mas o que viu, veio me contar:
- Ô, Adri, tu não vai acreditar! Outro velório! Vamos pra uma igreja que tenha missa, pelamordedeus!
Saímos. Nas escadarias, demos de cara com um padre, bem vestido de padre, e uma freira, da mesma forma nos moldes para a ocasião. Roci não aguentou:
- Ô, Seu Padre, boa tarde... Que horas é a missa?
- É sete horas, minha filha...
- Ah, tá certo...E me diga uma coisa, por favor, quem é o morto ali de dentro?
O Padre ficou branquinho que só. A freira só não fez o sinal da cruz por pura piedade de nós.
- Minha filha, aquela ali é a estátua do Senhor Morto! Hoje é Sexta-feria Santa!
A Roci, que perde o lugar no céu, mas não a piada:
- Ô, Seu Padre, que beleza, ãh...Hoje só tem defunto bom!!! Ali ex-governador, aqui Jesus Cristo! Vou te dizer, hoje só a diretoria!
Eu sai de fininho, nem vi a cara do padre. Ela veio atrás. Nem fomos mais na missa. Decidimos ir pra Cidade Baixa tomar uma cerveja. Afinal, não é todos os dias que se vai ao velório de Jesus Cristo e de um ex-governador numa tacada só.
9 comments:
kkkkkkkkk, só faltou dar uma de carpideiras e dar uma choradinha!
sensacional teu texto.
muito bom, mesmo.
Adri, estás escrevendo muito bem. isso não é novidade, eu sei, mas acontece que teu texto só melhora. parabéns.
adorei, Adri! muito engraçado
É a segunda vez que leio a segunda vez que me pego a rir sozinho.
Vai diz que aconteceram assim, de tal modo os “diálogos finais”?
Que bela blasfêmia!
O Cicatriz.
Muito boa...queria ter visto a cara do padre!! hehe
bjão guria...
Os míopes agradecem pelo fim do negrume,hehehe...
bj
mas, bah tchê, este texto tá muito bom.
muuuuito engraçado!!
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