Sobre encontros e amizades
Lisboa, um dia de abril de 2002, 17 horas.
Mochila nas costas, acabo de chegar na capital portuguesa, cinco horas depois de partir num ônibus de Sevilha, na Espanha. Pego o metrô e desço próximo ao Rossio, bairro da Lisboa Pombalina, da cidade antiga, assim como a Alfama, coroada pelo Castelo de São Jorge, que olha para mim pendurado no morro logo à frente. Deixo as coisas num hotelzinho barato do Rossio e, mesmo cansada, pergunto ao recepcionista uma dica de lugar para um lanchinho, quiçá um pequeno passeio antes de descansar para as pernadas do dia seguinte. Queria conhecer a Lisboa verdadeira, não a dos turistas apressados. E, por sorte, conseguiria, pois algo bem especial estava reservado para aquele dia.
- Podes tomar o eléctrico e subir ao Castelo. Estarás a ter uma bela vista do Tejo a esta hora.
Pareceu-me uma boa idéia, afinal o eléctrico passava logo em frente à Praça do Rossio e, lá do alto, o Castelo de São Jorge fazia um convite irrecusável. Fui.
Lá em cima, a vista do Tejo, ao entardecer, tinha nuanças de fado. Aproximei-me da mureta de pedras medievais para mirar o todo. E foi neste momento que nos encontramos. Ele estava também a mirar o Tejo e sua melancolia de final de tarde.
- Olá -, eu disse. Sou brasileira e acabo de chegar.
- Pois sejas bem vinda -, com um sorriso enorme.
Chama-se Alberto e quando nos conhecemos tinha 70 anos. Português da gema, tem a história de seu país nas veias e sabe contá-la. Descemos a pé a colina que sustenta o Castelo de São Jorge, tomamos um café na Alfama. Levou-me a conhecer uma confeitaria que Fernando Pessoa amava, mas que não é famosa em Lisboa (sim, pois por sorte o turismo canibal não a atingiu) e lá pude sentir-me um pouco portuguesa e os versos de Pessoa me deixaram tonta de alegria.
Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca (...)
O GUARDADOR DE REBANHOS (IX)
Passeamos pelo Rossio, mostrou-me o Teatro Nacional D. Maria II, falou-me de cinema (é sócio da Cinemateca Portuguesa e vai ao cinema mais de três vezes por semana), de poesia e teatro (outros dois vícios), de vida (o vício mais profundo!). Contou-me da esposa, que havia perdido há pouco tempo, vítima de câncer.
Perguntou-me do Brasil, de nossas diferenças, dos resquícios da colônia. Criticou a si e seus patrícios pela exploração nos idos coloniais e, por verdadeiro que é, disse-me que sofre muito hoje ao ver brasileiros ainda sendo explorados em seu país e em toda a Europa.
Contei-lhe de Amanda, minha filha, então com quase dois anos, e de todos os planos que me acompanhavam.
Nos despedimos próximo das onze horas da noite. Ele voltaria para Almada, onde mora, do outro lado do Tejo. Eu - se é que eu era ainda eu, pois teria que pensar muito naquelas mais de cinco horas de conversa e de histórias de vida para entender-me novamente -, voltaria para o hotelzinho do Rossio.
Disse-me:
- Viva muito, menina! Viva!
Pedi que me deixasse seu endereço postal. Queria mandar-lhe algo do Brasil, apesar de saber que tudo seria pouco diante de tanta coisa que aprendi em poucas horas.
Faz cinco anos que nos correspondemos mensalmente. Nunca mais nos vimos (espero que 2008 me permita visitá-lo com Amanda). Me envia envelopes cheios de informações sobre todas as atividades culturais que participa, mostras de cinema, teatro, música. É o mais árduo incentivador de minha vontade de ser roteirista. Viajou para Cuba, por minha pressão, para conhecer o que eu lhe mostrei por fotos. Minha filha, Amanda, já se corresponde com ele. Aprendeu a ler também com os livros de literatura portuguesa que ele mandou.
Alberto está com 75 anos. Conta histórias para deficientes visuais todas as tardes, numa instituição ali perto. Leva-os a passear pelo Tejo e conta-lhes as nuanças deste rio que exala fado.
Já me contou muitas histórias e me fez ver muita coisa com sua experiência de vida e capacidade de cuidar, de ser amigo.
Obrigada, Seu Alberto.
2 comments:
Puxa, que história linda e bem escrita. To engasgado :)
Linda história Adri. Bjs, ju
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