“O que é um homem cujo principal uso e melhor aproveitamento
do seu tempo é comer e dormir? Apenas um animal.
É evidente que este que nos criou com tanto entendimento,
capazes de olhar o passado e conceber o futuro, não nos deu
essa capacidade e essa razão divina para mofar em nós, sem uso.”
Hamlet, de William Shakespeare, com tradução de Millôr Fernandes
Cinco horas da tarde e aquele barulho infernal das crianças saindo da escola. Ângelo não suportava quando eles passavam aos berros. Eram diabos!
- Filhos da mãe! – resmungou para si mesmo, sabendo que o Vander estava de orelha afiada para o seu lado.
O Vander já tinha terminado os três pé e mão que estavam agendados para aquela tarde no seu caderninho do Salão Beauty. Estava parado na porta, do outro lado da rua estreita. Atravessou e foi comer seu sanduíche vespertino sentado na calçada, do lado do sofá vermelho onde o Ângelo vivia, em meio a sacos de lixo cheios de jornais e de roupas velhas.
- Pelo amor de Deus, my love! – o Vander já estava com a boca cheia de sanduíche. – Tua rabugice está aumentando horrores!
Ângelo esfregou as mãos no rosto com força.
- Trouxe o meu de hoje? Ou só esse teu pão de ontem?
O Vander gostava dessa hora. Sempre botava o nariz pra cima e alcançava o sanduíche do Ângelo com desdém, como quem diz: “tu vais te foder no dia em que eu não trouxer mais isso!”.
- Tá aqui, my love.
- Olha aqui, pára com essa coisa de pão com queijo todo o dia. Não tem mais nada na porra da tua casa? E some daqui, seu merda. Não me aparece mais do lado de cá da calçada.
Ao Vander soou absolutamente normal a reação daquele homem grande e sujo, que conhecia há tanto tempo. Então já não tinham quase brigado mais de mil vezes por causa do mau humor do Ângelo? Engoliu o resto do sanduíche e limpou os lábios com as costas da mão. Não havia mais crianças na rua.
- Olha aqui, Ângelo, você já sabe que não me mete medo. Mas se te faz bem desabafar assim, vai fundo, meu amor! – levantou-se, bateu as duas mãos na calça branca e jogou o cabelo tingido para trás.
Voltar ao salão, juntar as coisinhas e já pra casa: era só o que precisava para aliviar a tensão do dia. Entre o trabalho de auxiliar de cabeleireiro e o sonho de ter o próprio salão de beleza corria um rio imenso, com águas profundas. As cartas tinham avisado. Ele tinha compreendido a mensagem do tarô, justo daquela vez que botou para o Ângelo também: “Eu vou me foder trabalhando, mas um dia vou ter o salão. Olha aqui: é o Rei de Ouros! E você, Ângelo, vai acabar a vida nessa calçada”.