Thursday, February 26, 2009

Por um pão com queijo

“O que é um homem cujo principal uso e melhor aproveitamento
do seu tempo é comer e dormir? Apenas um animal.
É evidente que este que nos criou com tanto entendimento,
capazes de olhar o passado e conceber o futuro, não nos deu
essa capacidade e essa razão divina para mofar em nós, sem uso.”
Hamlet, de William Shakespeare, com tradução de Millôr Fernandes



Cinco horas da tarde e aquele barulho infernal das crianças saindo da escola. Ângelo não suportava quando eles passavam aos berros. Eram diabos!

- Filhos da mãe! – resmungou para si mesmo, sabendo que o Vander estava de orelha afiada para o seu lado.

O Vander já tinha terminado os três pé e mão que estavam agendados para aquela tarde no seu caderninho do Salão Beauty. Estava parado na porta, do outro lado da rua estreita. Atravessou e foi comer seu sanduíche vespertino sentado na calçada, do lado do sofá vermelho onde o Ângelo vivia, em meio a sacos de lixo cheios de jornais e de roupas velhas.

- Pelo amor de Deus, my love! – o Vander já estava com a boca cheia de sanduíche. – Tua rabugice está aumentando horrores!

Ângelo esfregou as mãos no rosto com força.

- Trouxe o meu de hoje? Ou só esse teu pão de ontem?

O Vander gostava dessa hora. Sempre botava o nariz pra cima e alcançava o sanduíche do Ângelo com desdém, como quem diz: “tu vais te foder no dia em que eu não trouxer mais isso!”.

- Tá aqui, my love.

- Olha aqui, pára com essa coisa de pão com queijo todo o dia. Não tem mais nada na porra da tua casa? E some daqui, seu merda. Não me aparece mais do lado de cá da calçada.

Ao Vander soou absolutamente normal a reação daquele homem grande e sujo, que conhecia há tanto tempo. Então já não tinham quase brigado mais de mil vezes por causa do mau humor do Ângelo? Engoliu o resto do sanduíche e limpou os lábios com as costas da mão. Não havia mais crianças na rua.

- Olha aqui, Ângelo, você já sabe que não me mete medo. Mas se te faz bem desabafar assim, vai fundo, meu amor! – levantou-se, bateu as duas mãos na calça branca e jogou o cabelo tingido para trás.

Voltar ao salão, juntar as coisinhas e já pra casa: era só o que precisava para aliviar a tensão do dia. Entre o trabalho de auxiliar de cabeleireiro e o sonho de ter o próprio salão de beleza corria um rio imenso, com águas profundas. As cartas tinham avisado. Ele tinha compreendido a mensagem do tarô, justo daquela vez que botou para o Ângelo também: “Eu vou me foder trabalhando, mas um dia vou ter o salão. Olha aqui: é o Rei de Ouros! E você, Ângelo, vai acabar a vida nessa calçada”.
Mas isso fazia tanto tempo. Vander desapareceu para dentro do Salão Beauty.
Ângelo já não pensava mais nas crianças e no barulho. Eram quase sete horas da noite. Ajeitou-se no velho sofá vermelho, ignorou os passantes da calçada. Fechou os olhos e logo dormiu.

Adriane Canan
(alguns anos atrás)
Canção para a despedida

Houve um dia em que eu passei e vi
um homem que varria os cacos do puteiro da Rua Olavo Bilac.
Onze horas da manhã de sábado,
os cacos do puteiro

Naquele dia eu pensei:
no puteiro da Olavo,
nas árvores da Olavo,
na dona Maria da Olavo.

A vista do terraço do nosso prédio era monótona,
mas não nos demos conta.

Wednesday, February 25, 2009

Mas que eu queria, eu queria...

Saturday, February 21, 2009

Veludo, querido...

O cara da foto é o Veludo, personagem do Renato Turnes no curta Veludo & Cacos-de-Vidro, de Marco Martins. Sou fã do Renato desde que o conheci, em 1995, na Udesc, quando cursamos disciplinas juntos no curso de Artes Cênicas.

É o cara: atua, cria, reflete sobre a criação.
Espia os textos dele lá no blog do Veludo.
Ah, e a saga de Veludo & Cacos-de-Vidro vai continuar.
A turma deve filmar em breve Beijos de Arame-Farpado.
No Porta Curtas, acesse também o curta: Os sapatos de Aristeu, de Luiz René Guerra. Renato está no elenco. E o filme é muito bom.
Beijo, Re!

Friday, February 20, 2009

Ai se sêsse sempre sexta-feira!

Cordel do Fogo Encantado tocando alto. Sexta-feira.
Sílvia Pavesi me manda foto dos caras. Ela clicou no Rio de Janeiro, durante show na Feira Nacional da Agricultura Familiar!
Foto: Sílvia Pavesi

Ai Se Sêsse

Cordel Do Fogo Encantado
Composição: Zé Da Luz


Se um dia nois se gostasse
Se um dia nois se queresse
Se nois dois se empareasse
Se juntim nois dois vivesse
Se juntim nois dois morasse
Se juntim nois dois drumisse
Se juntim nois dois morresse

Se pro céu nois assubisse
Mas porém acontecesse
de São Pedro não abrisse
a porta do céu e fosse
te dizer qualquer tulice

E se eu me arriminasse
E tu cum eu insistisse
pra que eu me arresolvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tarvês que nois dois ficasse
Tarvês que nois dois caisse
E o céu furado arriasse
e as virgi toda fugisse!

Thursday, February 19, 2009

[ bons dias ]
Manhã de quinta-feira. Centro de Florianópolis. Parada no Bob's pra tomar um expressinho.
Na mesa ao lado, um grupo de senhores. São uns cinco ou seis. Um deles está acompanhado pela esposa.

Tomo meu café bem devagar.

Eles conversam.

Dois senhores, baixinho:
- Vistes o concurso de marchinhas?
- Não, que tal?
- Várias coisinhas boas. O destaque é o Barak, claro. Mas a que mais gostei foi sobre a reforma ortográfica...
- É? O que diz?
- Mistura criatividade com um pouco de safadeza...A marchinha boa tem isso, não é? Fala da dificuldade de tirar o trema da linguiça...
- Hahahaha...
- Ah, pois é...

O casal que está na mesa se levanta para sair. Caminham devagar na direção do Calçadão da Trajano. Na mesa:
- É bodas de esmeralda, já?
- É!
- Ah, sim, bodas de esmeralda é aos 60 anos de casados, isso mesmo!

Wednesday, February 18, 2009

Viva México, cabrones!!

O Caderno de Turismo do Correio Braziliense de hoje traz um super material sobre o México. E o melhor: produzido pelos amigos Sílvia Pavesi e Eumano Silva. Eles passaram mais de ano viajando pela hispanoamérica e publicando uma série de reportagens. São textos e fotos especiais!

Do Correio: "Esta reportagem sobre o México encerra a série Viagem pela História publicada pelo Correio desde julho de 2007. Durante um ano, os autores percorreram 14 países da América Latina em ônibus, trens, barcos, triciclos e longas caminhadas. Sem pegar avião, atravessaram todas as fronteiras de Brasília a Tijuana, quase nos Estados Unidos. A série demonstrou como o turismo pode ser usado para se conhecer a memória preservada de um continente. Das doze reportagens, oito mereceram capa do caderno Turismo".

O material sobre o México está super completo e traz como título principal: A arte como testemunha

Várias matérias dão um contexto bem amplo da cultura mexicana:
A conquista do México
Uma cidade sobre a outra
Tesouros da antiguidade
Os amantes da Casa Azul
Além de dicas no Guia de Viagem

Abaixo, reproduzo matéria e foto da Sílvia Pavesi sobre Frida Kahlo e Diego Rivera!

Parabéns pelo belo trabalho!

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Fachada da residência onde viveram Frida Kahlo e Diego Rivera

Os amantes da Casa Azul
A tumultuada relação de Frida Kahlo e Diego Rivera misturou arte, sexo, boemia e política.
Museu revela a intimidade dos dois pintores

Silvia Pavesi
Especial para o Correio


Ao cruzar a soleira da porta da Casa Azul, o visitante entra na intimidade de dois dos maiores artistas mexicanos. Esbarra por todos os lados em fragmentos da história de personagens marcantes do século passado. Logo na entrada, uma frase pintada na parede diz: “Frida y Diego vivieron en esta casa”.

Frida Kahlo, pintora quase que por acaso, casou-se com o consagrado muralista Diego Rivera em 1929. O casal instalou-se na casa construída por Guillermo Kahlo, pai da noiva, no bairro de Coyoacán, nos arredores da Cidade do México. A casa era branca. Foi pintada de azul-vivo pelos artistas em homenagem às fortes cores da cultura mexicana.

Transformada em museu em 1958, quatro anos após a morte de Frida, a Casal Azul reúne uma maravilhoso coleção de objetos e obras de arte que conta um pouco da conturbada e sofrida vida da pintora. Autorretratos, roupas, coletes de gesso, pincéis, cavaletes e dezenas de cartas trocadas entre Frida, seus amantes e personalidades da época emocionam o visitante. A cama onde Frida começou a esboçar os primeiros desenhos está cercada por fotografias de Lênin, Stalin e Mão Tse Tung, lembranças da militância política da pintora que ingressou no Partido Comunista Mexicano em 1928.

Frida nasceu em 6 de julho de 1907. Aos seis anos de idade contraiu poliomelite, doença que afetou o pé direito e o jeito de andar da menina.

A adolescente se preparava para cursar medicina, não pensava em ser artista. O destino começou a mudar no dia 17 de setembro de 1925, quando retornava para casa após um dia de aula, uma colisão mudou a vida da estudante. O bonde que a transportava para Coyoacán sofreu um violento acidente. Uma barra de ferro entrou pela bacia e destroçou o franzino corpo da garota de 18 anos.

As cirurgias e a imobilidade na cama despertaram a veia artística de Frida. Os primeiros rabiscos foram no próprio gesso. Borboletas e flores davam vida à couraça que envolvia o corpo dilacerado. Como o repouso forçado se prolongava, a mãe de Frida, Matilde Calderón, adaptou um cavalete à cama e um espelho no teto para a filha conseguir se ver e pintar. Assim surgiram os primeiros autorretratos.

A artista nunca se livrou das fortes dores e teve que se submeter a inúmeras cirurgias ao longo da vida. Depois de muitas experiências, voltou a caminhar, com certa dificuldade. O martírio e o suplício físicos foram a maior influência na arte da mexicana.


Um dia, Frida tomou coragem e procurou o já famoso Diego Rivera para mostrar alguns quadros. O experiente pintor se impressionou com o trabalho da desconhecida. O gosto pela arte e a militância no Partido Comunista uniram os dois talentos. O corpanzil de Rivera contrastava com a fragilidade da jovem. A mãe ficou contra o casamento. Disse que era a união de uma pombinha com um elefante.

Frida não se deixou influenciar pelo marido e desenvolveu um trabalho próprio. Conheceu o francês André Breton que a classificou de surrealista. Frida respondeu que não pintava sonhos e sim sua própria realidade. Em 1938 realizou a primeira exposição em Nova Yorque. Logo em seguida, expôs no Museu do Louvre, em Paris.

O casamento com Rivera foi marcado por extravagâncias e traições. Cercados de artistas, os dois viviam em um ambiente boêmio e vanguardista para os padrões da época. O muralista tinha casos com modelos, artistas e até com a irmã de Frida. Ela sofria, mas perdoava o marido. Separaram-se mas voltaram a casar algum tempo depois. Mesmo com o corpo retalhado por cirurgias e dificuldades para caminhar, Frida era uma mulher encantadora, sedutora e charmosa. Cultivava admiradores. Homens e mulheres freqüentaram a cama da artista. Rivera fazia de conta que nada via.

Em 1937, Leon Trotski, fugindo da perseguição de Stalin, se refugiou no México e se abrigou na Casa Azul. Os casais discutiam política, estética e visitavam as pirâmides astecas. O velho comunista e a artista acabaram seduzidos um pelo outro. Rivera não suportou e pediu aos russos que deixassem a Casa Azul.

Em 1953, Frida expôs pela primeira vez no México. Quase não pôde ir à abertura. Estava muito doente, com fortes dores na coluna. Proibida pelo médico de levantar, ela chegou ao local da exposição deitada na própria cama, cercada por enfermeiros. Causou comoção. Menos de um ano depois, Frida Kahlo morreu aos 47 anos de idade enquanto dormia na Casa Azul.

Tuesday, February 17, 2009

hoje, talvez amanhã...
Cris e Márcia on the road

Paisagem do interior da Espanha

Amiga-irmã!

Cris Cardoso, minha amiga-irmã pra sempre, volta semana que vem de uma viagem de quase três meses pela Europa. Pense numa pessoa curiosa!! Quero saber de tudo, nega! Pode chegar contando...
Ela e a prima Márcia percorreram vários países, descobrindo cores, aromas, texturas, paisagens. No cartão postal que me enviou, uma foto linda, p&b, de Paris, com palavras de transformação. Viagem sempre transforma a gente, que bom!
Ela relata alguns momentos da trip no Segura o Leme! Espia!

Saturday, February 14, 2009

música

Andar conmigo
Julieta Venegas

Hay tanto que quiero contarte
Hay tanto que quiero saber de ti
Ya podemos empezar poco a poco
Cuentame que te trae por aqui
No te asustes en decirme la verdad
Eso nunca puede estar así tan mal
Yo tambien tengo secretos para darte
Y que sepas que ya no me sirven más.

Hay tantos caminos por andar...
Dime si tu quisieras andar conmigo
Cuentame si quisieras andar conmigo
Dime si tu quisieras andar conmigo
Cuentame si quisieras andar conmigo

Estoy anciosa por soltarlo todo
Desde el principio hasta llegar al día de hoy
Una historia tengo en mi para entregarte
Una historia todavia sin final
Podriamos decirnos cualquier cosa
Incluso darnos para siempre un siempre no
Pero ahora frente a frente aqui sentados
Festejemos que la vida nos cruzó.

Hay tantos caminos por andar
Dime si tu quisieras andar conmigo
Cuentame si tu quisieras andar conmigo
Dime si tu quisieras andar conmigo
Cuentame si tu quisieras andar conmigo...

Si quisieras andar conmigo
Si quisieras andar conmigo...
momentos.bacanas
Ju, eu e Amanda tomando Purezinha no centro da cidade.

Friday, February 13, 2009

Já faz algum tempo que o Osmar partiu pro más allá.
Tem dias em que a saudade bate imensa. Hoje foi um deles. Intenso.
Beijo, querido amigo! E uma poesia pra ti, feita naqueles dias de tristeza:

Quando Osmar Gomes resolveu encontrar Frida Kahlo
(17/11/2006)

vai osmar
dá um beijo na frida kahlo

vou sentir saudades
vou lembrar de risadas e abraços
de caminhadas e poesias
do teu sorriso
de papel higiênico enrolado nas pernas
de teatro
da tua echarpe
das tuas mãos finas
dos teus belos textos
dos teus belos sonhos
das tuas brigas
da tua força
da tua fraqueza

vai osmar
dá um beijo na frida kahlo

Roda-viva

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mais eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
No volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

[Chico Buarque]

Thursday, February 12, 2009

Livros à mão cheia
O SESC convida ao lançamento da coletânea de contos ONZE MARGENS, nesta quinta, 12, às 20 horas, na Biblioteca do Sesc/Prainha, reunindo os onze novos autores do CURSO DE FORMAÇÃO DE ESCRITORES ministrado em Florianópolis por Dennis Radünz.
O CURSO DE FORMAÇÃO é um projeto do Sesc/SC, criado em 2004, e conta com 15 publicações em todas as regiões de SC. ONZE MARGENS, organizado por Radünz, é a 16a. edição do projeto e a primeira de Florianópolis.

ONZE MARGENS / Autores

Adriana Baldissarelli
A eternidade (ou Uroboro)

Adriane Canan
Vértigo

Carlos Cardoso
A ciência de Nazca

Cristiane Cardoso
Aquela velha história

Fabiana Chryssovergis
Fantasia de improviso

Lilian Schmeil
Me and Miss Jones

Manoela de Borba
O traje último de Cubas

Margarida Baird
Amanhã, ninguém sabe...

Rodrigo Brasil
A cidade dos anões

Shaumi Womer
Silêncio das lágrimas

Thiago Toscani
Do Pó ao pó

Tuesday, February 10, 2009

Fabuloso Mundo de Amanda

Novo blog na parada.
É o Fabuloso Mundo de Amanda.
As aventuras de uma guria de oito anos descobrindo o mundo.
As pequenas-grandes felicidades cotidianas!

Monday, February 09, 2009




Querido e talentoso

Juliano Zanotelli, querido amigo de Chapecó, ficou com a gente em Floripa durante uns dias. Veio participar da abertura de exposição coletiva no MASC. Fiquei bem orgulhosa do Ju, expondo suas obras, mostrando seu trabalho! A exposição fica até março! Passem lá pra ver!

Em novembro ele abre uma individual no Badesc.
Tá com tudo, Ju!
Umas asas enormes!

Amanda leu hoje seu primeiro conto do Gabriel García Márquez: Um homem muito velho com umas asas enormes.

Sim, ela gostou muito. Sim, eu me emocionei.
Re-publicando (um conto bem antigo)

Alma

Irina tinha a cabeça baixa e a alma quebrada quando entrou na sapataria. Sentiu que estava suando e esfregou as mãos úmidas na blusa com força. Só então olhou para trás do balcão do pequeno estabelecimento, abarrotado de sapatos esquecidos, de jornais velhos pendurados nas prateleiras de madeira e de sacolas com fechos quebrados.

Ao encontrar o olhar daquele homem alto e gordo, de bigodes ralos grudados pela mesma cola que sufocava o ambiente, ficou com a impressão de que o sapateiro sabia de tudo. Encheu os olhos d’água, sentiu uma leve tontura, mas deu dois passos, apoiou-se no balcão e disfarçou tirando a sandália vermelha da sacola e abrindo um sorriso meio de lado: talvez não houvesse mais conserto, ela se enfiara num buraco sem saída, sentira-se presa, não dava para explicar:

- Aí, bom, quebrou. É isso!

Viu um filtro na mesinha cheia de ferramentas do sapateiro e pediu-lhe água. Precisava se acalmar um pouco antes de saber a opinião do homem. Perguntou se podia sentar. Ele apontou o banquinho forrado de couro. Sentou-se, ajeitou a bolsa no colo e ficou observando o sapateiro que analisava o calçado.

Irina sabia que seria difícil aceitar que terminasse assim, e não tirava aquilo da cabeça. Era uma ótima esposa, fazia tudo para que os fins de semana fossem maravilhosos e que os programas feitos com o Francis tivessem todos os ingredientes daqueles inesquecíveis. As fotos comprovavam todas as aventuras que viveram juntos: Arembepe, Bombinhas, São Francisco de Paula no invernão! Sem falar, é claro, do álbum do casamento: aquela era uma união apaixonada, cheia de coisas em comum, bastava ver a cara dos amigos. E o movimento estudantil? As passeatas? O voto convicto no mesmo projeto político? E a reforma da casa? E O Tigre e o Dragão naquele domingo no cinema? O disco do Chico Buarque comprado num sebo em São Paulo? E ainda havia a história dela levar até o trabalho para perto de casa, para perto do Francis. Os contra eram bem poucos. Ela não gostava de futebol – e aquele enorme pôster do Internacional colado na parede suja da sapataria! -, e era um pouco ingênua para certas coisas. Havia também aqueles sonhos de adolescente, que poderiam levá-la para longe. Mas não era coisa para briga tão feia. Ir para casas separadas, ficar sem se falar, e ainda, que merda!, o buraco e o estrago na sandália vermelha.

Bebeu a água em pequenos goles e sofreu quando o sapateiro puxou o salto com tanta força que descolou tudo.

- Está aqui o problema – disse o homem.

Ele tinha uma voz bonita, forte e amiga. Tentaria resolver, mas o conserto era difícil. Estava quebrada na peça de metal entre o salto e a sola, a alma:

- Problema assim, dona, pode ser até que não tenha jeito.

Ela sentiu vontade de chorar bem alto. Respirou fundo e disse meia dúzia de palavras que saíram sem pensar:

- Bom, vê o que dá pra fazer. Passo aqui amanhã ou semana que vem ou no próximo mês ou...

Levantou-se, colocou o copo no balcão depressa para não mostrar a tremedeira e pensou na Marina. Achou que seria legal dar um pulinho na casa da amiga. Perguntou se não estaria abusando se usasse rapidinho o telefone da casa, o celular estava sem bateria. O homem foi atencioso, alcançou o telefone até o balcão e explicou que a tinta branca dos números tinha desaparecido porque os dedos molhados de cola ou água castigavam as teclas há tempo.
Ela disse que tudo bem e digitou com rapidez os números que tinha na memória. Pediu pra Marina se dava para passar lá e conversar um pouco. Largou o fone no gancho, olhou com carinho para o sapateiro e agradeceu a gentileza. Queria muito cuidado com a sandália vermelha, passaria ali como combinado para saber do conserto.

Encontrou a tarde já caindo na rua e entrou no carro com a cabeça doendo. Ligou o rádio e ouviu As rosas não falam, do Cartola, bem baixinho. Quando chegou no prédio da Marina o sol já tinha se posto, mas os apartamentos estavam com as luzes acesas.

Adriane Canan (2001)
"Mi única explicación es que así como los hechos reales se olvidan, también algunos que nunca fueran pueden estar en los recuerdos como si hubieran sido."

¨Memoria de mis putas tristes¨
Gabriel García Márquez
Editorial Sudamericana

Friday, February 06, 2009


Valentin

Revi Valentin, do argentino Alejandro Agresti.
Que delicadeza.
...

- Tienes que parar con eso de ser astronauta, niño! Eso no te va llevar a nada!
- Como no me vá llevar a nada? Me vá llevar a la luna!!
[Re-publicando]

Epifânia

Epifânia sempre foi mulher de posses. Anote-se: um fusca amarelo, ano 67 - que ela guarda envolto numa capa de pano marrom, um papagaio rouco, três sacolas de feira bordadas à mão, dois jogos de louça bem bonita, sete toalhas de prato pintadas para cada dia da semana, uma casa de madeira, anos 50, silenciosa, encolhida entre dois prédios do centro da cidade, e um suspiro inacabado, preso no fundo do peito.

A verdade é que pouco importa para a história saber o que Epifânia possui. Por direta oposição, nos interessa aquilo que falta. E se o que tem já está listado, apontemos, então, o que ficou vazio. Anote-se: o lado direito de uma cama de casal herdada dos pais, falecidos há 30 anos, quando ela beirava os 45, o lado esquerdo de um armário de madeira com prateleiras, cabideiro para roupas e chapéu, espaço para três pares de sapato, e um bom dia amor numa manhã de inverno.

É tudo.

Adri Canan - 2008

Wednesday, February 04, 2009

Fã do Frank

Esse rapazi dá um banho, ô! Espia lá no Xinelão Studio
[Nunca hice nada distinto de escribir, pero no tengo vocación ni virtud de narrador, ignoro por completo las leyes de la composición dramática, y si me he embarcado en esta empresa es porque confío en la luz de lo mucho que he leído en la vida. Dicho en romance crudo, soy un cabo de raza sin méritos ni brillo, que no tendría nada que legar a sus sobrevivientes de no haber sido por los hechos que me dispongo a referir como pueda en esta memoria de mi grande amor.]


[Madita sea, pensé, qué desleal és el rubor.]

¨Memoria de mis putas tristes¨
Gabriel García Márquez
Editorial Sudamericana